quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O presente

"Nada mais vai me ferir
É que já me acostumei
Com a estrada errada que segui
E com a minha própria lei..."

Sem nenhum entusiasmo: foi assim que ela acordou para trabalhar naquela sexta-feira chuvosa. Levantou com o pé esquerdo, tomou um café amargo feito as pressas, comeu o pão de forma velho do armário - "já está mais do que na hora de fazer compras", pensou - escovou os dentes e se trocou. Uma roupa qualquer e um pouco de blush. Guarda-chuva e sapatos fechados.

Antes de pôr os pés pra fora de casa, reparou de relance no embrulho jogado em cima do armário da sala. Deveria ter sido entregue já faziam quatro ou cinco dias. O aniversário que ela sempre lembra com carinho, naquele ano deixou de ter importância. Havia escolhido o objeto com o cuidado de uma mãe e ao mesmo tempo com a empolgação de uma menina. Mas eles definitivamente não estavam em uma boa fase. Há alguns meses vinham tendo discussões tolas, queixavam-se um do outro com facilidade e não se olhavam com amor. Então, ela decidiu enquanto era tempo que tomaria as rédias da vida e seguiria suas próprias leis.

Depois do término, havia chegado em casa e afastado os móveis. Decidiu que não gostava mesmo daquela decoração. Recolocou as almofadas todas a seu modo. Foi ao quarto e arrumou a cama, colocou uma mala pesada em cima e tirou uma a uma, as camisas do armário. O perfume lhe confundia o olfato - paro a mão e cheiro ou levo até a mala sem cheirar? - mas o cérebro deixava o nariz pra depois, sem parar nenhum movimento. Uma caixa jogada na área de serviço foi o suficiente para colocar todas as coisas dele... o laptop, um porta-retratos, um chinelo velho e as coisas que estavam no banheiro. Após ter juntado tudo em um pequeno canto da sala perto da porta, mandou uma mensagem: "Pega tuas coisas assim que puder". E só.

Foi naquela sexta-feira, saindo para o trabalho, que se deu conta do embrulho. Seria o presente de aniversário perfeito, não fosse a imperfeição dos últimos dias. E mesmo com todo o desânimo, voltou a atenção para a caixa com laço delicado, tomou-a nas mãos e saiu.

Chegando no trabalho, viu o colega que sempre lhe agradava. Se aproximou a passos silenciosos, abriu um sorriso e entregou o embrulho - "pra você". Voltou a sua mesa, tão entusiasmada quanto quando começara o dia. Porém, dessa vez, com um sorriso forçado no rosto e uma tentativa de encher os pulmões o quanto conseguisse, pensou "é hora de seguir em frente".



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