sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O Sorteio

Porque a vida sempre surpreende quem não espera nada dela.


Era pra ser só mais uma palestra chata da qual nosso chefe nos fez participar. Cheguei acompanhada da minha colega de trabalho e logo na entrada pediram para preencher uma ficha com nossos dados. Não gosto de dados. Gostaria que as pessoas fossem reconhecidas pelos olhos, pelo jeito, corte de cabelo ou os tipos de flores nas janelas de suas casas. Isso de números me incomoda um pouco. Registro Geral, Cadastro de Pessoa Física, Código de Endereço Postal... dá um trabalhão decorar tanto algarismo. Mas tudo bem, tudo bem. O procedimento foi realizado com sucesso e adentramos a palestra motivacional de vendas e de como-passar-duas-horas-pensando-que-se-dará-bem-nessa-vida-de-merda. Enquanto escolhíamos nossos lugares, comecei uma rápida e já habitual averiguação do local: muita gente, um telão para projetor, microfones, fotógrafos e o palestrante. Até aí, tudo na paz. O que me chamou a atenção foi uma mesa recheada de presentes em um canto qualquer. Pensei com meus botões e depois confidenciei à colega: "Olha ali, será que a ficha com nossos dados é para um sorteio? Será que vamos levar aqueles presentes para casa?". Ela riu. Não me levou muito a sério.

Mas a palestra passou (demorada e chata, por sinal) e o grande momento chegou. Sim, haveria um sorteio. Eram pequenos brindes cedidos pelas empresas parceiras da Associação Comercial. Me acomodei na cadeira e brinquei com a colega: "Vou me ajeitar e já deixar a bolsa de lado porque vou lá pegar o primeiro presente". Ela riu de novo e não me levou a sério. A ironia, já característica da minha personalidade, que estava na frase como um modo de protesto à vida por nunca me dar a oportunidade de ser sorteada em coisas de caráter gratuito, caiu por terra quando uma criança escolhida pelo palestrante pegou um papel dentro de um saco abarrotado deles e leu o meu nome em alto em bom som. Sim, meus caros, eu fui a primeira sorteada. O prêmio? Um jogo de toalhas (simples, porém útil). A lição? A mais clichê possível: é quando menos esperamos, em momentos nos quais não gostaríamos de estar ali, que a vida nos surpreende. Eu e meus colegas de trabalho (principalmente a que me acompanhava desde o começo da minha ladainha) ficamos tão embasbacados com o sorteio que a probabilidade estatística de ser sorteada só me passou pela cabeça muito tempo depois do ocorrido.


Acho que a vida é meio assim, sabe? Existem diversos "sorteios" por aí dos quais não nos damos conta. Ser contemplada com um jogo de toalhas me fez refletir e perceber que já fui contemplada inúmeras vezes. Ganhei amigos, oportunidades, sorrisos, amores e momentos que apenas eu, entre dezenas, centenas e até milhares de pessoas, fui capaz de ganhar.

E para que eu pudesse levar um belíssimo jogo de toalhas para casa, foi preciso me deslocar até lá e dedicar tempo e paciência para ouvir um moço que criticava novelas e falava de motivação. A metáfora fica, mesmo que um tanto clichê e brega, por saber que não há contemplação sem esforço, trabalho, cansaço e até aborrecimento. Então, metaforicamente vos digo: A VIDA ESTÁ AÍ! Preencha seus dados, assista o que se passa com paciência, tenha forças e fique até o fim... você nunca sabe quando será surpreendido!      

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A arte de esquecer, por Ivan Martins

Pôr os sentimentos de lado é permitir que a vida prossiga

Por Ivan Martins 

O livro mais triste que conheço sobre o amor se chama O legado de Eszter, do húngaro Sándor Márai. Quando o li, tive a sensação de que minha vida, como a da personagem, seria destruída pela esperança de um romance irrecuperável. Eszter espera pela visita do grande amor do passado, que a salvará de uma existência de solidão e vergonha. Eu esperava pelo retorno de uma mulher que nunca voltou. 

Lembro o livro, o período e a dor como partes de um mesmo corpo. A prosa límpida e hipnótica de Márai ligava a vida da mulher no início do século XX à minha, que se desenrolava às vésperas do século XXI. As personagens e as palavras dele deram àquele momento as cores de uma profunda melancolia, mas a tingiram, ao mesmo tempo, de uma estranha lucidez. Lembro-me de pensar, de forma um pouco dramática, que afundava de olhos abertos.

Fui procurar ontem o livro na minha estante e descobri que não está mais lá. Sumiu, assim como o afeto inextinguível que eu sentia. Alguém levou meu livro embora, ou se esqueceu de devolvê-lo. O tempo dispôs silenciosamente da minha paixão. Diante disso, me ocorre que esquecer é uma benção – ou uma arte, a aprimorar meticulosamente ao longo da vida. Pôr pessoas e sentimentos de lado é permitir que a existência prossiga.



Não há nada que eu gostaria tanto de ensinar aos outros e a mim mesmo como a capacidade de deixar sentimentos para trás. Olho ao redor e vejo gente encalhada como barcos na areia. Homens e mulheres. Esperam pelo passado, embora a vida se espraie em possibilidades à volta delas. Precisam de tempo para se recuperar, mas carecem de luz. Necessitam entender que a dor – embora inevitável – não constitui uma virtude, nem mesmo um caminho. Tem apenas ser superada, para que o futuro aconteça.

A Eszter de Márai vive encarcerada no universo moral e jurídico legado a ela pelo século XIX. Mulher, seu destino era ligado às decisões de um homem, Lajos. Ela espera porque não tem meios de agir. Ser corrompida pela esperança e pelo perdão é o que lhe resta. Sua posição na sociedade consiste numa espécie inexorável de destino.

Não há, no mundo em que vivemos, uma jaula social correspondente a essa. Fazemos nossas escolhas no interior de amplos limites existenciais. Somos inteiramente responsáveis por nossos sentimentos, ou ao menos pelas atitudes que tomamos diante deles. Se decidimos ficar e esperar, se permitimos nos tornar o objeto passivo das manipulações ou indecisões alheias, não há um Lajos a quem acusar.

Ainda assim, construímos prisões mentais à nossa volta. Prisioneiros de uma noção ridícula de amor do século XIX, quando ainda não havia liberdade pessoal, imaginamos que o amor é único e eterno – e que perdê-lo equivale a perder a vida, como um trem que passasse uma única vez numa estação deserta. Nada mais longe da realidade. Nossa vida se abre desde o início em múltiplas possibilidades e se desenvolve em companhia de inúmeras pessoas. Alguns terão papéis importantes e duradouros. Outros serão passagens breves e luminosas, como uma tarde de verão. Todos, com uma ou outra exceção monumental, veremos partir. Nós mesmos iremos embora em incontáveis ocasiões. Nos restará o desapego, como antes só restava a Eszter a resignação.

Por isso, a arte de esquecer é essencial. Ela me parece a mais moderna das sabedorias sentimentais, aquela que mais permite mover-se no mundo como ele é, não como nos fizeram crer que ele seria. Nesse mundo haverá sexo, haverá paixão e, às vezes, haverá amor. É provável que haja desencontro e ruptura e que sejamos forçados a começar de novo, sozinhos. Esse é o ciclo da vida como ela se apresenta no século XXI. Nele, deixar para trás e esquecer é tão essencial quanto reconhecer e se vincular. Consiste no nosso legado sentimental. Ele começou a ser elaborado por tipos rebeldes nos anos 60 e continua a ser refeito hoje em dia. Nada tem a ver com o legado de Eszter, embora este ainda nos ensine e nos comova.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O Último Lamento

Belo Horizonte, 20 de Março de 2064.

Querida Ana,

Como vão as coisas? Não nos vemos há muito. Espero que não estranhes este meu repentino aparecimento. Só precisava de uma oportunidade para dizer algumas poucas palavras.
Sabes, a vida que levamos quando lhe conheci me deu uma uma falsa sensação de certeza e segurança sobre algo que jamais poderia imaginar que perderia: o teu respeito e a tua admiração. 
Lembra-te de quando nos beijamos naquele dia ensolarado de praia, envoltos de amigos "maneiros"? Eu me lembro como se fosse ontem. Nós abríamos os braços e sentíamos o vento, repletos de pensamentos que nos davam a segurança de que seríamos jovens para sempre. Não fomos. 
Este ano completo setenta e dois anos de idade. E em cada aniversário eu lembro dos teus olhos cuidadosos e tua mão que afagava o meu choro quando me punha a reclamar da vida. Hoje sei - infelizmente tarde demais - que devemos dar valor àquilo que somos e temos. O valor que me destes era visível em teus atos. Quanto à mim, percebo que fui egoísta. Ninguém é feliz sozinho. Eu fui feliz ao teu lado, mas hoje, sentado nesta sala e cadeira velhas, percebo que poderia tê-la comigo. E percebo também que não fiz por merecer. Quando nos conhecemos, éramos jovens sonhadores. Hoje, sonho em voltar no tempo para deixar de ser tão sonhador e pôr meus pés no chão. Não que sonhar seja ruim - longe disso - mas é que, em certos momentos, sentir-se seguro é fundamental para um futuro sem solidão. 
A briga que nos separou hoje ecoa em meus ouvidos como as notas desafinadas de um violino velho. 
Espero que estejas entendendo a que ponto desejo chegar nesta carta, minha querida. 
Sinto tanto tua falta que posso fechar os olhos e sentir o teu perfume no vento. 
Sou um homem solitário, Ana. Hoje sei que isso não faz diferença para ti. Sei que encontrastes alguém que dá valor aos teus carinhos sinceros. Sei que não voltarei a ver-te. Só escrevo para pedir desculpas por todas as coisas que deram erradas entre nós dois. Devo-te um respeito tão imenso, que nem chega a caber-me no peito. Devo-te parte de mim. Parte do que fui e do que pretendia ser naquela época. É tarde demais para lamentos, mas faço-os mesmo assim. Lamento por tê-la desapontado e por não tê-la olhado nos olhos e dito tudo o que poderia ter sido de nós.

Lamento por tê-la amado demais sem transparecer isso de uma forma bela e direta.
Lamento por deixar esta vida sem tê-la em meus braços mais uma vez.

Com carinho,

Artur.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O presente

"Nada mais vai me ferir
É que já me acostumei
Com a estrada errada que segui
E com a minha própria lei..."

Sem nenhum entusiasmo: foi assim que ela acordou para trabalhar naquela sexta-feira chuvosa. Levantou com o pé esquerdo, tomou um café amargo feito as pressas, comeu o pão de forma velho do armário - "já está mais do que na hora de fazer compras", pensou - escovou os dentes e se trocou. Uma roupa qualquer e um pouco de blush. Guarda-chuva e sapatos fechados.

Antes de pôr os pés pra fora de casa, reparou de relance no embrulho jogado em cima do armário da sala. Deveria ter sido entregue já faziam quatro ou cinco dias. O aniversário que ela sempre lembra com carinho, naquele ano deixou de ter importância. Havia escolhido o objeto com o cuidado de uma mãe e ao mesmo tempo com a empolgação de uma menina. Mas eles definitivamente não estavam em uma boa fase. Há alguns meses vinham tendo discussões tolas, queixavam-se um do outro com facilidade e não se olhavam com amor. Então, ela decidiu enquanto era tempo que tomaria as rédias da vida e seguiria suas próprias leis.

Depois do término, havia chegado em casa e afastado os móveis. Decidiu que não gostava mesmo daquela decoração. Recolocou as almofadas todas a seu modo. Foi ao quarto e arrumou a cama, colocou uma mala pesada em cima e tirou uma a uma, as camisas do armário. O perfume lhe confundia o olfato - paro a mão e cheiro ou levo até a mala sem cheirar? - mas o cérebro deixava o nariz pra depois, sem parar nenhum movimento. Uma caixa jogada na área de serviço foi o suficiente para colocar todas as coisas dele... o laptop, um porta-retratos, um chinelo velho e as coisas que estavam no banheiro. Após ter juntado tudo em um pequeno canto da sala perto da porta, mandou uma mensagem: "Pega tuas coisas assim que puder". E só.

Foi naquela sexta-feira, saindo para o trabalho, que se deu conta do embrulho. Seria o presente de aniversário perfeito, não fosse a imperfeição dos últimos dias. E mesmo com todo o desânimo, voltou a atenção para a caixa com laço delicado, tomou-a nas mãos e saiu.

Chegando no trabalho, viu o colega que sempre lhe agradava. Se aproximou a passos silenciosos, abriu um sorriso e entregou o embrulho - "pra você". Voltou a sua mesa, tão entusiasmada quanto quando começara o dia. Porém, dessa vez, com um sorriso forçado no rosto e uma tentativa de encher os pulmões o quanto conseguisse, pensou "é hora de seguir em frente".