quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Cão-guia

Essa noite eu tive um sonho esquisito. Era sonho e era pesadelo ao mesmo tempo. Não deu muito pra distinguir porque os acontecimentos se alternavam descompassadamente lá naquele lugar onde as coisas se passam na surdina da noite, enquanto a gente dorme. Comecei a andar por uma rua conhecida, chorando. Na verdade não sei se era chuva ou era choro. Tem sonho que fica tudo nublado e eu nunca sei o que é. Mas era triste de qualquer maneira, não dá pra negar. Andava e corria, sempre com esse fôlego que me falta quando quero fazer algo com pressa. Cheguei na escada que me é conhecida em vida real e que tantas vezes desci que já não sei se a maioria eu era triste ou era feliz. Acho que era feliz. Mas no começo do sonho era tudo tão triste que compensou todos os momentos escuros que nunca passei ali. Cheguei na porta
e apertei a companhia. O coração pulsante e o rosto úmido. Sentia uma agonia, uma vontade de pedir pra acordar, que eu até esqueci que tenho e levo a chave daquele lugar. Ouvi o barulho da maçaneta e vi a silhueta que também me é conhecida em vida real. Mas a porta demorou a se abrir um pouco mais do que o normal. Quando abriu, lá estava ele. Meu amigo de sempre, que tanto me acolhe, não sorriu ao me ver. Aliás, por não me ver, me revelava de modo estranhamente incompatível, o motivo de tanta tristeza. Gustavo estava cego. Sem o deixar perguntar "quem é", eu o abracei e passei a distinguir o choro da chuva. Ali, dentro da sala, os únicos espaços com goteiras eram os meus olhos. Ele sussurrou algo que me fez rir e ta aí a parte do sonho que eu não distingui. Disse que era pra ficar tranquila, que aquilo não passava de bobeira minha e, em um surto de gargalhada, nos demos conta de coisas que não faríamos mais. Ver filmes, ler poesias, nos olharmos com recriminação ou com alguma brincadeira que só nós conhecemos, ver a lua, brincar com as nuvens. Eu não entendi, sabe? Foi triste e engraçado ao mesmo tempo. Nos sentamos e ele contava, em breves relances, um pouco de sua raiva por um tal "erro médico". Dizia que a vida o ironizou por querer ser um deles mas que, de agora em diante, teria que se esforçar muito para continuar. Eu ria, mas me sentia incomodada com o fato dele não me olhar. Ou de olhar pro vazio. Eu sabia que de alguma forma as coisas mudariam, mas continuava com a estranha indagação sobre o bom e o ruim... tentando conciliar o nosso destoado riso com um desafio que decidi enfrentar: seria para ele, o olhar que o faltava. E queria aquilo em todos os sentidos possíveis: aprenderia o braille que tanto achei confuso, o ajudaria com o "Bastão de Hoover" e quem sabe até treinaríamos um cão-guia. Sobre o fato do cão ele riu e lembrou ser o nome de uma música que gosto bastante. E dentre tanta aflição, risos e um sonho de muita confusão, entendi que dali pra frente eu deveria desempenhar um papel que os amigos fazem sem perceber: eu o ajudaria a enxergar o mundo com os olhos do coração. 

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